terça-feira, 21 de dezembro de 2010

aposta!

Sentou-se na poltrona e puxou a coberta envolvendo todo o corpo e cabeça. Podia sentir o calor que exalava embaixo daquele pequeno esconderijo. Lembrou que no bolso da jaqueta havia um pequeno tablete de chocolate, e com uma tentativa frustrada, tentou mover o braço que encontrava-se preso pelo cobertor. Ao move-lo, o cobertor escorregou de sua cabeça, deixando um pequeno buraco pelo qual entrou o ar gelado de inverno. Ele então, cobriu-se novamente. Fez desse pequeno detalhe, uma aposta com si mesmo: deveria alcançar o chocolate, sem estragar seu esconderijo.
Depois de inúmeras tentativas frustradas, levantou-se bruscamente deixando o cobertor escorregar até o chão e cair embolado aos seus pés.
Tirou finalmente o chocolate do bolso e deu uma mordida.
E o que deveria ser doce, vem trazendo um gosto amargo. Letícia.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Até o fim raiar!

Ele era mesmo lindo. Tinha os olhos pretos como jabuticabas e as sobrancelhas grossas, que teimavam em erguer-se quando ele desconfiava de algo. Os cabelos eram loiros e bem lisos, e quase sempre escorregavam em seu rosto. Caiam ao redor dos olhos, fazendo-o erguer a cabeça pra trás a fim de que os fios não tapassem sua visão.
Ele não gostava muito de acordar cedo. Sempre que isso se fazia necessário, ele sentava-se na mesa do café, apoiava o rosto em uma das mãos e ficava durante um bom tempo mexendo a colher dentro do copo. Olhava fixamente para algo que eu não saberia dizer o que era. Eu nunca soube o que ele pensava nesses momentos. Nesses, e nem em vários outros.
Ele não era de falar muito. Aliás, sempre foi mais de fazer do que de falar. Lembro de uma vez que em que andávamos de carro olhando as luzinhas de natal. Eu sempre gostei muito dessa época, e ele, mesmo sem participar tão ativamente desse espírito natalino, me acompanhava nesses passeios noturnos porque sabia que assim me arrancaria um sorriso. Nesse dia, lembro-me que ele estava mais agitado que o normal e sorria timidamente para todas as perguntas que eu fazia.
Paramos em frente a uma casa, que nem tinha tantos enfeites assim, mas que encontrava-se numa rua tranqüila e quase sem movimento. Eu olhei-o e sorri. Ele me pediu pra abrir o porta-luvas do carro a fim de pegar um CD que eu tanto gostava. No momento eu que abri a portinhola, tal foi a minha surpresa. Lá do fundo caíram várias pétalas de rosas vermelhas. Tinham um cheiro tão bom. No meio delas havia um anel com o nome dele gravado na parte de dentro do círculo prateado. Olhei-o, e ele sorria em meio aos olhos marejados de lágrimas. Inclinou o corpo em minha direção e me abraçou. Nunca um abraço tinha sido tão doce. Naquele momento, eu tive a certeza de que era com ele que eu queria passar as minhas manhãs, tardes e noites. Que era com ele que eu queria dividir meus medos, ansiedades e desejos. E que era aquele sorriso e aquele abraço que me fariam enfrentar toda e qualquer tempestade, porque era dele que eu precisava.
Depois daquele dia, criamos uma cumplicidade invejável. Eu o acompanhava nas aulas de música, assistíamos filmes de terror e em seguida uma maratona de desenhos animados. Saíamos nos finais de semana e deitávamos no gramado do parque e ficávamos horas lendo em voz alta trechos de livros. Eu adorava quando ele construía entonações diferentes para cada personagem, e às vezes, a interpretação chegava até a acompanhar gestos e vestuários.
A única coisa da qual eu não gostava, era do silêncio dele. Tinha dias em que ele passava horas sentado no sofá olhando para o nada, sem esboçar sentimento algum. Às vezes eu o pegava chorando em algum canto da casa, mas ele logo tratava de disfarçar e me distrair para que nada daquilo me afetasse. No fundo, eu sempre tive a sensação de que ele guardava algum segredo que não queria dividir. Ele me parecia tão triste, que às vezes eu tinha a nítida impressão de que nada do que eu fizesse ou falasse o faria esquecer aquela angústia que ele carregava todos os dias.
Lembro-me que naquela manhã de domingo ele acordou agitado, com os olhos fundos de olheiras como se tivesse passado a noite em claro. Preparou um café com os pãezinhos de queijo que eu mais gostava. Sentou-se ao meu lado na mesa, mas não comeu absolutamente nada. Olhava-me tão fixamente como se quisesse guardar cada instante daquele dia. Depois que eu terminei de comer, puxou-me pela mão e colocou o CD que eu havia lhe dado em seu aniversário. Era a banda preferida dele. Conversamos por horas. Rimos, tomamos vinho, almoçamos e passamos a tarde jogando baralho. E como sempre eu fiquei emburrada por perder dele mais uma vez. Quando começou a anoitecer, resolvemos andar de bicicleta. Fazíamos isso em quase todas as tardes quentes como aquela, e quando voltamos ele disse que precisava ir embora. Todo domingo era assim. Eu odiava ter que me despedir dele para começar a semana atribulada novamente. Mas dessa vez, ele não me disse ‘até amanhã’. Me beijou de um jeito tão delicado e ao mesmo tempo assustado e ficamos durante muito tempo abraçados. Foi quando ele se afastou. Foi de distanciando pelo corredor da porta, e lá de longe eu o ouvi dizer: ‘eu te amo, para sempre’. Eu não respondi, e ele foi embora. Para nunca mais voltar.
Eu nunca entendi qual a imensidão de um sentimento, que leva alguém a preferir a morte a qualquer outra opção, mas talvez a escolha dele tenha feito com que as todas aquelas angústias cessassem. Toda a dor, e a tristeza agora haviam se acalmado. Eu só queria ter tido mais uma chance de dizer que eu também o amava. Para além da vida!

Leticia Gabriele.