quinta-feira, 19 de abril de 2012

Me ensina?

Ela está sempre um passo a frente.
Passos firmes que ela traça com douçura.
Chega vestida de preto, com botas de salto fino, ajustadas à perna até a altura do joelho.
Os cabelos castanhos, clareados nas pontas, repousam delicadamente sobre os ombros.
Nos braços uma tatuagem, quase encoberta pela blusa rendada.

Exala sensualidade.
É livre e sabe disso, assim, mantém distância e sobe degraus.
Degraus tão altos, quase inalcansáveis.

É dela o sorriso, o abrigo, a convicção.
São dela também as palavras.
Ela não aprende, ensina! Letícia.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Você tem fome de quê?

Sem tempo, hora ou destino, o rapaz de sorriso amarelo sente fome. Nas costas, carrega uma mochila, com todos os seus pertences. Presa a ela, está a barraca, com a capa azul já rasurada. Ele levanta-se e atravessa a Praça Rui Barbosa - uma das mais movimentadas de Curitiba – e segue em direção ao Restaurante Popular. Em frente à cabine, a nota de dois reais é retirada do bolso da calça e trocada por um dos dois mil tickets refeição vendidos diariamente. A moeda de um real restante é guardada cuidadosamente para o almoço do dia seguinte.

Gustavo sobe a escadaria rodeada por muros esverdeados e se posiciona em meio à fila de espera para a entrada no restaurante. No cardápio do dia: arroz, feijão, peixe, macarrão, salada e fruta. O cheiro da comida fresca se esvai pelas janelas e é sentido do lado de fora do ambiente, aguçando ainda mais a fome de quem chega a esperar até quarenta minutos em pé para almoçar. Gustavo não se importa. Ele não tem horários e nem preguiça. Há cinco anos seus pés trafegam pela América Latina em busca de aprendizado. O cultivo da terra e a construção de casas de cimento são atrativos que aproximam o argentino do próximo destino traçado: Paranacity. Em Buenos Aires, cidade natal, as casas da comunidade em que morou durante toda a infância – passada boa parte na rua - são construídas com barro e materiais recicláveis. Órfão desde um ano de idade, Gustavo foi criado pelos avós até completar 15 anos - quando a morte dos tutores- o obrigou a andar em par com a solidão. De lá para cá, ele convive, até muito bem, com ela. Prefere assim, porque diz que “não quer ter responsabilidade sob ninguém”, mas comenta sobre o filho de seis anos que mora com a mãe em Buenos Aires. Pergunto se ele sente saudade da família. “Saudade?” ele pergunta. “Não entendo o que quer dizer”, responde risonho.

O estômago ronca. A fila anda e Gustavo despede-se com um forte aperto de mão seguido pela repetição de um aviso fixado na parede do local: "Volte sempre!" Letícia G.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Na cama estavam espalhados os inúmeors discos dos Beatles, ocultados pela manta marrom. Ele gostava de dormir sempre coberto, mesmo nos dias mais quentes. Tinha frio nos pés.
Na cômoda, ele havia deixado o cinzeiro. Andava fumando muito.
Andava irritado também.
Talvez uma coisa levasse a outra. O certo é que eram quase duas carteiras por dia.
O odor de cigarro alastrava-se pelo quarto compondo um véu de fumaça que ele inalava profunda e diariamente.
Depositado sobre o tapete, estava o violão. Intocado. Ao lado, o amontoado de papéis rabiscados, formando uma espécie de alucinação literária. Iguais a estes, haviam mais centenas encaixotados no armário.
As cortinas estavam fechadas e assim conservaram-se durante semanas. A claridade da janela o incomodava. A brisa o incomodava. O barulho o incomodava.
O que ele precisava mesmo era de escuridão, pra acomodar aquela imensidão de covardias. Letícia G.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Divide comigo?

Ela sentia muito que dessa vez não fosse possível dividir. Não havia a possibilidade de ser metade. Ou era tudo, ou era nada.
Ela sentia muito porque sempre dividira seu espaço. Quando criança, a casa embora quase sempre vazia durante o dia, enchia-se por completo durante a noite, quando as “pessoas grandes” voltavam para jantar.
Sentia muito porque sempre dividiu suas angústias com a avó Dida. Ela sabia que naquele colo rendado, os problemas eram costurados a mão a fim de entremear neles, toda a sua sabedoria.
Também sentia muito porque sempre dividira seus sorrisos. Certas vezes eles vinham em forma de gargalhadas de faltar o ar. Em outras, ele aparecia quase que forçado, para que o seu “sorrir” erguesse mesmo que minimamente, o cantinho dos lábios do outro.
Mas agora era diferente.
Todo o amor dela, agora tinha que ser dele. E ele não queria dividir.
Foi quando ela pensou: Como é que se explica pra ele, que o amor dela não consegue viver aprisionado?
Na verdade ela acostumou a chamá-lo de: amor livre! Letícia G.